Woman knitting with kishie of peats (pormenor), Shetland, fim do século XIX ou início do século XX. Imagem do Shetland Museum Photographic Archive.
Há uns meses fui contactada de surpresa pela Rosarinho Caeiro, antropóloga, que me escreveu o seguinte:
Estou a trabalhar no Museu Nacional de Arqueologia que tem uma colecção de etnografia constituída pelo Leite Vasconcelos em finais do século XIX e parte do XX. Neste momento está a ser trabalhada a colecção de tecnologia têxtil. Existem umas agulhas cuja única referência que temos, em verbete do próprio Leite Vasconcelos, é a de que serviriam ‘para fazer meia’ e que já estariam em desuso na altura da recolha. Não sabemos onde foram recolhidas, nem conseguimos perceber como teriam funcionado (não são agulhas normais). (…)
Como é natural, fiquei muito curiosa e cheia de vontade de descobrir o que seriam estes instrumentos mas sem mais informações e sem os ver não consegui ser minimamente útil. Pesquisei o Google books e andei à procura de agulhas antigas de tricot, mas não fiz nenhum progresso.
Alguns emails depois, a Rosarinho conseguiu dar-me mais informações: afinal não eram agulhas mas antes ‘canhões para fazer meia que as mulheres usam à cintura’. São 3, têm 21, 23 e 25 cm de comprimento, em madeira, com entalhes decorativos e incrustações em chumbo. Uma das extremidades das peças, com cerca de 4 cm é em chumbo e é perfurada no topo (com profundidade de 3 a 4 cm). Também me enviou imagens das peças (mas não tenho autorização do museu para as mostrar aqui) e chamou-me a atenção para uma outra, idêntica, da colecção do Museu do Abade de Baçal, que está erradamente catalogada como canhão de tear.
Canhão de fazer meia (catalogado como Canhão de Tear), proveniência desconhecida, séc. XIX, Museu do Abade de Baçal.
Com estas novas informações e mais emails para cá e para lá, o mais perto que estive foi pensar que pudessem ser suportes para trazer a lã pendurada à cintura (como se vê na primeira fotografia), mas fiquei a saber que para esse efeito se usavam por cá cá as ‘maçarocas’ – uma espécie de gaiola como as das rocas, mas em versão mais pequena, onde se prendia a lã (gostava de ver uma) ou estranhos cabos para agulhas de crochet, o que apesar de tudo não estava muito longe. Já a Rosarinho, sem o saber, chegou à resposta certa quando me escreveu:
Aquilo que o nosso senso comum e sensibilidade nos sugerem é que no orifício que te referi se enfiaria uma agulha e que a peça serviria como suporte de apoio colocada à cintura, ‘espetada à cintura’ como refere Leite Vasconcelos. Há quem faça malha com uma agulha fixa debaixo do braço, quem sabe se não haveria quem usasse a mesma técnica mas usando como apoio a cintura.
Do meu lado, percebi finalmente do que se tratava ao ler o livro Folk Socks, de Nancy Bush que, ao descrever o fabrico manual de peças tricotadas em Inglaterra no início do século XX, diz:
The knitters work at great speed, using a knitting sheath to support one of the needles, called wires or pricks, and rocking back and forth while knitting to give the work a rhythm. While they knit, the fabric was supported by hooks of different shapes. One end of the hook was attached to the knitter’s apron, the other to the knitting.
Ramsay, R, Interior of crofthouse (pormenor), 1890-1920. Imagem do Shetland Museum Photographic Archive.
Descoberto o knitting sheath, parente inglês do canhão de fazer meia, faltava perceber na prática como funciona esta técnica em que uma das agulhas está fixa a um suporte preso à cintura. Graças à internet, não foi difícil. Fiquei a saber que existem em diversos materiais e feitios e que o seu uso permitia um trabalho mais uniforme e surpreendentemente rápido, essencial para quem fazia do fabrico de meias modo de vida. Nas fotografias e pinturas raramente se distingue o canhão, por estar à mesma altura dos antebraços, mas há pelo menos dois vídeos em que se percebe como funciona. Um está na página do Dent Village Heritage Centre e o outro no blog A Fisherman Knits. Nas ilhas Shetland, em vez do canhão era usado um cinto com orifícios, chamado knitting belt.
Gostava de saber mais sobre os canhões de fazer meia portugueses, e se desapareceram mesmo ou se alguém ainda sabe ou viu usar, e termino com uma das imagens mais interessantes que descobri enquanto fazia a pesquisa para este post: o retrato de um fazedor/vendedor de meias ambulante do fim do século XVI ou princípio do século XVII.
Anibale Carracci (1560-1609), Un faiseur de bas ambulant occupé à tricoter. Imagem do Musée du Louvre département des Arts graphiques.
Leave a Reply