Nesta altura do ano ainda não estão assim, carregados de sementes (que vistas de perto são lindas). São a invasora mais resistente e de crescimento mais fulgurante com que nos deparamos no quintal. Chamam-se Espanta Lobos (Ailanthus altissima) e vieram da China não se sabe quando. Impedem o crescimento de outras plantas, expandem-se por baixo da terra quando as cortamos, não se percebe onde acaba uma e começa a seguinte. Crescem nos baldios da cidade e percorrem as bermas da estrada do paÃs inteiro. Ainda por cima cheiram mal. Todos os dias arrancamos as que germinaram da noite para o dia e de quando em vez chamamos amigos para ajudar a arrancar árvores adultas até ao último pedaço de raiz. Ramos cortados expostos a meses de sol ressuscitaram quando fizemos o disparate de os usar como estacas. Uma leitora enviou-me este vÃdeo com uma técnica interessante para quem tenha destas árvores a crescer por perto. Ainda não experimentámos mas estou curiosa:
fiar na roda
No inÃcio do ano passei mais de um mês de roda de um artigo que fui convidada a escrever. As viagens pelas ilhas e pelos livros resultaram em mais de vinte páginas que verão a luz do dia lá mais para a frente este ano. Não tenho muita facilidade em pôr ideias no papel. Adio o mais possÃvel, desculpo-me com uma leitura por fazer, uma ideia por confirmar, prometo a mim mesma começar amanhã. Acabei por ter de pôr tudo o resto de lado e dedicar-me só à escrita, os dias que fosse preciso, sem interrupções até estar feito. Esta semana fiz a última revisão à bibliografia e juntei as imagens e agora resta-me esperar. Entretanto várias horas de recolhas guardadas em discos esperam também que as edite e partilhe, porque são muito mais do que um complemento ao texto. Este vÃdeo que publiquei hoje (já com quase quatro anos de atraso) é uma verdadeira aula de fiação na roda de tipo 1. Deixei-o assim longo de propósito, para que se vejam e revejam os vários momentos do processo: o estirar e torcer das fibras e o enrolamento no fuso, a correcção das irregularidades do fio, o pegar de uma pasta com a seguinte, o pôr do fio na roda quando ele se solta. Toda uma coreografia que se repete imutável há pelo menos oitocentos anos.
bordaleira da serra da estrela
Chega a época das tosquias e antes dela a das grandes decisões. Quanta lã e que lã vão os meus fios usar no ano lanar que agora começa. É um calendário diferente, este, anunciado pelas primeiras romarias a partir da Páscoa.
Volto à Serra da Estrela, onde tudo começou há tanto tempo para trabalhar de perto a lã daqui até ao novelo.
choose churra
Notas a propósito de duas imagens da Exposição Universal de Chicago de 1933 (obrigada à Paola que mas mostrou):
No stand português apregoa-se a qualidade da nossa lã churra para uso em tapeçarias.
Actualmente a nossa maior fábrica de fios de lã para a indústria dos tapetes trabalha quase exclusivamente com lãs churras importadas e os criadores das nossas raças churras, donos em geral de pequenos rebanhos) têm grandes dificuldades em escoar a sua lã. Aqui ao lado é parecido.
Mantas e serapes, quase de certeza de Reguengos. As traduções de todos os pormenores do pavilhão português parecem à prova de bala. A palavra serape era nova para mim e não podia ser melhor para descrever o uso da manta alentejana como agasalho.
mungoche
Pela primeira vez desenhei e publiquei um modelo de camisola. No que diz respeito a instruções de tricot foi a coisa mais ambiciosa que fiz até à data, mas tenho a certeza que virão outras camisolas por aÃ. Dei o modelo a testar a três corajosas voluntárias. Uma delas, a Tânia, super experiente e minha amiga virtual desde os tempos do BookCrossing). As outras duas, a Michelle e a Alexandra, caras conhecidas da Retrosaria, vieram ter comigo a meio do trabalho para acertar agulhas.
A primeira parte da camisola é bastante desafiante, com short rows e aumentos simétricos, tudo trabalhado em canelado para baralhar. Não é de todo um projecto aconselhado a iniciantes, mas quem já tenha passado pela Masterclass das camisolas sem costuras ou domine as técnicas necessárias acho que se conseguirá desembaraçar. Para fazer a coisa mais a sério, tenho estado a publicar mais alguns vÃdeos aqui e pedi à Inês (outra assÃdua da Retrosaria) que me ajudasse a coordenar um KAL no Ravelry. Quem se quiser juntar é muito bem-vindo!
romeirinha
Catálogo Geral das Novidades para Inverno de 1914 – Armazéns Grandella
Não era bem um xaile. Antes uma pequena capa em malha que cobria as costas e o peito e terminava mais ou menos à altura do cotovelo. Em 1914 o catálogo do Grandella (quem me dera ter um) anunciava-as, feitas à mão em malha de lã, como coisa adequada a uma senhora elegante.
Grupo ou Rancho de raparigas do campo em Elvas. Arquivo Foto Beleza, 1937. Imagens do Espólio Fotográfico Português.
1937, no Alto Alentejo. Curtas, em tricot e em crochet, aconchegam os ombros e o pescoço mas pouco mais, ou não dariam para usar durante as mondas e outros trabalhos do campo. Ficavam a matar com as flores no chapéu, as rendas do avental e os laçarotes das ligas.
Fast forward para o inÃcio dos anos 80: agasalho em malha 100% sintética, tricotado no concelho de Ourique para uma criança pequena. Recuperado quase quarenta anos depois e posto a uso para as brincadeiras no quintal, achei graça ao feitio e à construção em carreiras incompletas com borbotos. Resolvi tricotar uma versão em lã (claro) e perceber se continua a fazer sentido. Parece que sim.
O modelo está disponÃvel no Ravelry.
a barreta de são miguel
Mais de meio ano depois, eis que a versão final das instruções do meu gorro de São Miguel fica pronta. Comecei por desenhá-lo para o meu fio João, mas as beta testers acharam que o gorro resultava demasiado grande (aqui em casa somos todos cabeçudos, parece-me). Quatro gorros depois, sempre com pequenos ajustes, optei pelo Soft Donegal, por um cós em canelado liso e por menos uma fila de motivos. Tal como nas barretas antigas (cf. Malhas Portuguesas), o gorro começa com a cor mais clara (tradicionalmente o branco natural) mas depois a cor predominante é a mais escura, o que é um pormenor interessante e pouco frequente.
A barreta antiga tem a forma cónica comum a muitos barretes de malha tradicionais de vários pontos da Europa. Prática para guardar o tabaco e umas moedas, hoje em dia só o Pai Natal, os campinos e os forcados é que continuam a apreciá-la, pelo que a minha versão tem o comprimento habitual dos gorros contemporâneos. Perde-se em superfÃcie para brincar com os motivos mas fica mais visÃvel o padrão do topo da barreta, que é para mim um dos aspectos mais bonitos da peça. O pompom no topo (borla no original) é facultativo.
Daqui a uns meses estarei a escrever com mais profundidade sobre este e outros motivos das malhas tradicionais dos Açores. Imagino sempre que São Miguel podia ter sido a nossa Fair Isle…
As instruções do Gorro de São Miguel (aka #miguelhatpattern) estão disponÃveis em Português e em Inglês através do Ravelry.
vergÃlio correia
Um salto à Torre do Tombo para ver a exposição VergÃlio Correia (1888-1944): um olhar fotográfico (patente até 7 de Outubro). O A2 gostou das vacas, bois e cavalos e eu gostei das mesmas coisas de sempre. Ficam alguns acrescentos e correcções à s legendas, as mesmas do catálogo da exposição (que infelizmente não está à venda) editado pelo Centro de Estudos VergÃlio Correia (queria encontrá-lo online mas aparentemente o Centro não tem site).
16. Mulher e criança às costas[1]. Argola de ouro maciço[2] e trajo preto, saia e xaile.
Fuso munido de lã e respectiva roca para obra de fiação após cardação[3].
Arquitectura de granito, prestigiante e possivelmente manuelina.
Base de arco sobre capitel de pilastra decorado com meias esferas. Pavimento lajeado.
Beira Alta?[4]
[1] Mulher simulando fiar com bebé preso às costas no xaile, segundo um dos métodos tradicionais portugueses.
[2] As Argolas Carniceiras (que ainda se fazem) são ocas. Se fossem maciças daquele tamanho rasgavam a orelha.
[3] Provavelmente cardada, mas não necessariamente.
[4] Mesmo sem mais informação, arriscaria Trás-os-Montes e não Beira Alta. Do que conheço do babywearing da Beira, os bebés andavam mais ao lado e menos às costas, além de que por lá sempre tenho visto fiar a lã sem roca. Se se visse o cossoiro do fuso era mais fácil saber onde foi tirada a fotografia. A maneira de atar o lenço é uma pista que não fui explorar.
17. Grupo de mulheres, menina e criança[1]. Saias compridas, menina descalça.
Artefactuário de fiação[2], com proeminente dobadoura[3].
Arquitectura despojada. Cobertura com telha de meia cana.
Paisagem de luz e sombra.
Trás-os-Montes.
[1] Uma das senhoras está a fazer meia, parece.
[2] O artefactuário (neologismo?) é uma roda de fiar, localmente conhecida como torno.
[3] Proeminente roda, deve ser o que o autor queria dizer.
18. Mulher sentada. Vendedeira de lã em meadas [1]. Ao fundo, homens e animais.
Feira em meio rural. Muros de pedra solta e cumeada.
Paisagem inóspita.
Beira Alta? Trás-os-montes?
[1] Parece-me que o que a senhora tem ao lado são estrigas de linho, e não lã. E um belÃssimo taleigo também.
a bênção do gado
Mesmo ao lado de Lisboa, junto à capela de São Mamede de Janas, uma igrejinha do século XVI-XVII que merece só por si uma visita, celebra-se todos os anos a Bênção do Gado nas Festas de São Mamede. Aqui não há pastores vestidos a rigor e os animais já não são enfeitados, embora persista a tradição das fitas coloridas abençoadas protectoras (usadas pelos respectivos donos ao pescoço). As voltas à capela, assunto sério entre os pastores da Serra da Estrela, aqui são dadas em passeio, de tartaruga ao colo ou cão pela trela, que a festa não é só das ovelhas e cabras.
Cavalos, vacas, galinhas ou coelhos, todos têm direito ao duche de água benta servido acompanhado de um largo sorriso. No pinhal ao lado, os visitantes acampam e piquenicam durante todo o dia, desarrumando-se entre mantas penduradas que protegem do vento ou do sol. Ao lado há farturas, carrinhos de choque, cestos e ferramentas. No ano que vem voltamos de certeza.
#lãdosaçores
Uma semana em viagem para continuar um trabalho em curso sobre a lã nos Açores. Foi também o momento para ressuscitar o projecto Lã em Tempo Real, ao qual devo muitos gigabytes de gravações por todo o paÃs ainda por editar.
Em São Jorge as rodas de tipo 2 (cf. Normas de Inventário da Tecnologia Têxtil) entraram (ou vulgarizaram-se) dos inÃcios do século XX e substituÃram as que antes se usavam, de tipo 1 como em São Miguel. Chamam-lhes invariavelmente engenhos e já não há muitos a trabalhar, que a lã na ilha do Dragão, apesar das afamadas colchas, é coisa quase esquecida. Ela está lá, no entanto, no dorso das ovelhas tosquiadas só porque tem mesmo de ser, e é enterrada ou queimada todos os anos que os bichos são só para o petisco. Tantas contradições nesta ilha linda.
Cooperativa de Artesanato Senhora da Encarnação, Ribeira do Nabo, Ilha de São Jorge, Açores.