Nos inÃcios dos século XX, de todas as ilhas dos Açores era em São Miguel que havia mais ovelhas. Actualmente são tão poucas que só se encontram com esforço. A sua criação não constitui uma actividade económica, a sua carne desapareceu das ementas e memórias e a sua lã acaba frequentemente no lixo. Aqui não há rebanhos: as ovelhas existem sobretudo porque ajudam no maneio dos terrenos comendo plantas que as vacas, por serem mais selectivas, deixam para trás. Umas e outras, diga-se, acabam o dia a ruminar a dieta de pasto cheio de fertilizantes complementada com rações importadas de milho transgénico, que esse é um retrato das ilhas ao qual é cada vez mais difÃcil fechar os olhos…
mosaico hidráulico 2.0
Há oito anos, que foi quando comecei a fotografá-los regularmente, mostrei aqui o mosaico hidráulico mais bonito das lojas do Bairro Alto. Era na Casa Varela, ao cimo da Rua da Rosa. Nos meses e anos seguintes assisti à destruição de muitos destes pavimentos neste bairro e noutros. Porque era feio, porque era velho, porque era proibido. Continuou a acontecer, mesmo depois de entrar tão obviamente na moda, continua a acontecer agora, mesmo quando as revistas estrangeiras e os caçadores de tendências já olham para ele: o lindo chão da Casa Varela, que fechou entretanto, foi – inacreditavelmente – uma das vÃtimas mais recentes.
Mas, uns metros acima, no PrÃncipe Real…
O tempo dirá se é tendência passageira e demasiado gentrificada ou chega para ganhar raÃzes e abrir os olhos de quem vai a tempo para a preservação dos pavimentos antigos, mas a verdade é que há cada vez mais espaços novos a optar por este chão. Uma parte dele, suspeito, vem de Marrocos, onde muitas empresas vão buscá-lo por ser mais barato, e também há imitações (?!). Mas por cá há fabricantes novos, fabricantes sobreviventes e outros que reencontraram uma vocação antiga. Vale a pena conhecê-los e apoiá-los:
Somor, em Montemor-o-Novo.
Mosaicos d’Alcaria, na Vidigueira.
Artevida, em Fronteira.
Projecto Mosaico, em Sintra
E, claro, o Sr. Lúcio Zagalo em Estremoz.
(des)contexto
Springfield, Novembro de 2014. Camisola em fibras sintéticas idêntica à que é usada pela personagem Sara Lund na série dinamarquesa The Killing. A camisola original, em 100% lã e inspirada por motivos tradicionais das ilhas Faroe, foi concebida por Gudrun & Gudrun.
Scrolled Vines Apron (Style No. 7532601482556). Avental da marca Anthropologie com motivos de bordados de Viana do Castelo.
But can I have it both ways? If I want to ditch narrow nationalist associations in favour of a more diverse and fluid and culturally relative idea of knitting and design, why does this (…) still inspire in me a sensation of mild offence?
Kate Davies, knitwear and cultural relativism.
Para pensar.
knitsonik stranded colourwork sourcebook
A Felicity Ford, aka knitsonik, é uma de várias mulheres britânicas que admiro pela relação intelectual que têm com o tricot. Não escrevem posts particularmente cor de rosa e não passam a vida a apregoar a domesticidade (seja lá o que isso for, mas que normalmente – e sem tom pejorativo – inclui bolos e decoração), o que não significa que não tenham uma presença online esteticamente cuidada. O que publicam não é para percorrer na diagonal e fazer um rápido like, é mesmo para ler. É interessante e deu trabalho, tem informação e opinião. Ora a Felicity lançou há poucas semanas, depois de um bem sucedido processo de crowdfunding, um livro que reflecte bem esta maneira de estar na vida e na malha. Apesar de ser de leitura extremamente acessÃvel e de se poder ler de fio a pavio ou só olhar para as imagens, é um livro cuidadosamente concebido e escrito, daqueles que certamente sobreviverão bem à passagem do tempo. Propõe ser um manual para transformar as nossas paisagens e objectos de todos os dias (uma estrada, um edifÃcio, um gravador) em padrões de jacquard e apresenta um belÃssimo método para o fazer. O processo resulta na construção de amostras progressivamente afinadas até chegar ao resultado ideal, que pode depois ser aplicado em todo o género de peças (no livro são dadas instruções para umas perneiras e umas longas luvas sem dedos).
Felicity Ford, Knitsonik, Stranded Colourwork Sourcebook, 2014.
Mais knitsonik ♥: Shetland Wool Week Song (a letra está aqui) e Comparing the sounds of combing Estonian wool and Cumbrian wool in Mooste, Estonia, aqui.
Lisboa é uma cidade infinitamente inspiradora para quem pensa em padrões. Dos óbvios azulejos e mosaicos aos tons e linhas de uma casa esventrada. Os fios são Jamieson & Smith.
ver
Dentro de uma redoma de vidro, um dos livros que mais gostava de ver com todo o tempo do mundo: o códice rico das Cantigas de Santa Maria compiladas por Afonso X. O facsÃmile está fora do meu orçamento e online só se encontram pedacinhos. Quando há tantos anos se viaja nos detalhes das suas iluminuras (os padrões das roupas, as algibeiras, as ovelhas e a lã, etc., etc.), parece uma provocação vê-lo assim.
A História Partilhada. Tesouros dos Palácios Reais de Espanha. Na Gulbenkian até 25 de Janeiro.
Por passar à porta quase todos os dias fui adiando a visita. Fui ontem, no último dia, ver a exposição comemorativa dos 516 anos da Santa Casa da Misericórdia. A sequência de sinais de expostos, cuidadosamente organizados e contextualizados pelos registos de entrada dos bebés na instituição, é uma viagem no tempo de uma força invulgar. Entre eles, a minúscula meia rendada de um bebé deixado na roda em 1848.
Visitação. Na galeria de exposições da SCM (Igreja de São Roque). Terminou a 2 de Novembro.
♥ zagal
Voltei à Zagal para um casaco de malha que é o mais perfeito que já me saiu das agulhas. Parti (como tantas vezes antes) do Raglanify, mas acrescentei um triângulo em intarsia pelas costas abaixo e bolsos, parei os aumentos à frente antes do tempo para dar espaço às carcelas e fiz uma grande gola de rebuço com carreiras incompletas. No Ravelry está aqui.
volta à terra
Decidi vê-lo por causa da imagem da tosquia, como na véspera tinha ido ver outro por causa dos teares. Gosto de ir para os filmes antes de ler sobre eles. Este apanhou-me de surpresa, apaixonou-me. Nem me lembrava onde era a Uz, mas poucos minutos chegaram para perceber que só podia ser ali onde Trás-os-Montes começam a ser Minho, entre Salto e Bucos, na terra onde as barrosãs ainda são donas dos caminhos. Não é um filme saudosista nem paternalista nem caricatural nem todas as outras coisas que acontecem quase sempre que se tenta falar de outras maneiras de viver. É uma história de amor, um fio de terra.
Volta à Terra, de João Pedro Plácido, no DocLisboa. Volta a passar no sábado, dia 25.
joão
João era o menino loiro com um cordeiro branco ao colo que por alturas do solstÃcio de verão vinha de uma caixa na cave para o cimo da cascata. Também é o orago da capela onde pela primeira vez assisti a uma das nossas romarias de ovelhas (ouvir aqui).
João é o meu fio novo, feito de lã de ovelhas Merino do Alentejo, e quem desenhou o rótulo foi a Joana Rosa Bragança.
mondegueira
Muita da nossa lã vale menos do que a mão de obra necessária para a tosquiar (a lã da maioria das nossas raças churras vale em geral menos de €0.25/kg). A sua progressiva desvalorização ao longo dos últimos cinquenta anos criou uma espécie de ciclo vicioso difÃcil de quebrar: quanto menos vale a lã menos o pastor se preocupa com ela -> não vale a pena escolher e cruzar os exemplares com lã de melhor qualidade -> a lã do rebanho piora de geração em geração -> a falta de qualidade da lã fá-la valer cada vez menos -> …
A história das raças também me parece muitas vezes mal contada, com os estudos a dizer umas coisas e os pastores outras e o cruzamento entre a investigação das ciências duras e os dados etnográficos eternamente por fazer.
Em Figueira de Castelo Rodrigo voltei a cruzar-me com a raça Churra Mondegueira, que conhecia de perto do Museu dos LanifÃcios da Covilhã. Apesar de não ter chegado a escrever sobre esses dias, no ano passado fiz uma valiosa residência no museu onde, entre muitas outras coisas, trabalhei com a lã das duas ovelhas mondegueiras que lá moram. A sua caracterÃstica mais interessante é ser, de todas as que conheço de perto, a única raça double coated (lamentavelmente não sei como se diz em português), ou seja com um velo composto por dois tipos diferentes de fibras: uma camada exterior extremamente grosseira e uma outra, junto à pele, muito fina e macia, a lembrar as fibras de alpaca. Hoje em dia a lã da maioria das ovelhas mondegueiras faz pensar em tapetes resistentes (oxalá houvera quem os fizesse) e pouco mais. Mas como seria há três gerações atrás? E como poderia voltar a ser?
cobertor
O novo fio da Retrosaria chama-se Cobertor e é o fio com que são feitos os cobertores de papa. É espesso e no novelo o toque não é suave. A textura e torção fazem lembrar os fios islandeses com que se fazem as camisolas lopi. Aquilo que o torna mesmo especial, para além dos 500 anos de história quase desconhecida à qual espero voltar por aqui, é o que se lhe pode fazer depois de o tricotarmos: com uma pequena carda ou uma escova de aço para cães pode levantar-se facilmente a camada de pêlo densa e fofa que caracteriza os melhores cobertores de papa. A paleta que criei para este fio tem doze cores, mais o branco amarelado e o castanho naturais das ovelhas que lhe dão vida. Agora sonho vê-lo transformado em casacos e outras coisas boas de vestir no Inverno.
PS: o belÃssimo rótulo é da responsabilidade do Lord Mantraste.