Encomendei o The Gentle Art of Domesticity, da Jane Brocket só depois de ter lido esta crítica negativa. Nunca tinha sido seduzida por um blog em forma de livro mas, com o conteúdo visual do Yarnstorm, a possibilidade de o poder folhear longe do computador foi razão suficiente. E o livro é mais do que o blog. Não emito opinião sobre a opção de vida da autora, porque me parece ridículo fazê-lo, mas toda esta história da domesticidade não deixa de me incomodar um bocadinho, e confesso que uma introdução de cariz mais crítico ou histórico ou sociológico teria tornado (para mim) o livro ainda mais apetecível. Este post vem a propósito de umas linhas da página 11 em que se diz, sobre as gentle arts (ou ouvrages des dames, lavores ou aquilo que se lhes queira chamar): They have not been taken up by any government department and regulated and repackaged with health and safety messages and warnings. They are a matter of individual and personal choice. Percebo a ideia de afirmar que hoje em dia a prática das ditas gentle arts seja absolutamente livre e voluntária. Aliás, concordo inteiramente com a Jane quando ela afirma que é libertador o facto de não ser preciso skills, qualifications, training or equipment (já tentei explicar a várias pessoas que a criatividade que eventualmente tenha nestes domínios decorre em muito de ter estudado numa área bem diferente). Já a primeira frase fez-me saltar para ir buscar à estante uma pérola da literatura técnica do Estado Novo (ler alguns excertos mais abaixo), de onde se depreende exactamente o contrário, e querer vir aqui lembrar que o exame da quarta-classe das nossas mães incluiu uma prova obrigatória de Lavores Femininos, e que esta mesma disciplina (que os rapazes não frequentavam), as perseguia até no Liceu, gostassem ou não. Foi há muito pouco tempo e não convém esquecer.
Manuel Maria Calvet de Magalhães, A Bordadeira. Lisboa, Edições SNI (col. Cadernos do Povo), [194-]:
Para o exercício da profissão de bordadeira são necessárias qualidades especiais. Nem todas as raparigas se podem dedicar a este delicado ofício, porque nem todas são igualmente dotadas. (…)
Ora quem não tem gosto artístico, elegância de pensamento, (…) nunca poderá produzir trabalho de jeito.
A obra sai-lhe das mãos imperfeita, desajeitada, mal acabada, de mau gosto, desafiando o motejo de quem a contempla, e o trabalho em vez de ser um deleite suave e atraente, torna-se num doloroso esforço e num incomportável sacrifício. (p. 59)
Qualidades essenciais: (…)
a) – Ser de estatura média, a estatura preferível (…).
b) – Ser de perfeita complexão e boa saúde, pulmões saudáveis, vias digestivas normais. Além disso, não ser nervosa, mas de temperamento calmo e resistente. (p. 60)
Assim como nem todas as mulheres podem ser modistas ou cerzideiras, nem todas podem ser bordadeiras, porque nem todas têm a inteligência necessária para o ser. (p. 61)
Conhecimentos indispensáveis à profissão: Como base de todos os conhecimentos temos a instrução primária como indispensável. Aí se começa a ordenar devidamente os conhecimentos da aluna de hoje que virá a ser a mulher forte de amanhã dentro do lar, pelas virtudes domésticas que constituem o pedestal da sua verdadeira realeza (…). No espírito da criança se cultivará assim, com brandura e firmeza o gosto por tudo quanto diz respeito aos trabalhos próprios do sexo. (p. 63)
imagem: A Verdadeira Mulher, gravura anónima do séc. XVII. Paris, Biblioteca Nacional (reproduzida em História das Mulheres, vol. 3, p. 267.
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