Hoje em dia quando tenho vontade de dizer mal de uma coisa é frequente pensar que 1. não vale a pena e/ou 2. se o assunto me preocupa mais valia fazer qualquer coisa para tentar resolvê-lo. Tenho repulsa ao chamado virtue signalling e à conversa do eles. Por isso, quando vi estes caixotes pela primeira vez, imediatamente a seguir ao sentimento de irritação senti-me culpada por não assistir regularmente às reuniões da minha junta de freguesia, por não ser mais activa no condomínio, por ter demorado cinco minutos a mais no duche, enfim, por existir num planeta em colapso e ter plantado nele mais três criaturas. Mas pronto, há momentos em que uma pessoa tem mesmo de destilar um bocadinho porque não pode passar diariamente por estes electrodomésticos urbanos e ficar calada.
Desenhar um caixote do lixo é um desafio (aqui em casa o assunto foi tema de conversa recentemente): há que ser resistente às intempéries, protegido para a chuva não entrar, resistente ao fogo por causa dos cigarros e ao vandalismo (não sei se no vosso liceu também acontecia pegarem fogo de propósito a estes que de resto me continuam a parecer bem), fácil de esvaziar e de limpar e com capacidade suficiente para não exigir demasiada manutenção. Mas um caixote do lixo tem de ser antes de mais tão fácil de usar que qualquer pessoa o use sem pensar, sem dúvidas e sem hesitações. E, pelamordedeus, estamos no século vinte e um, pensado para durar e construído com a menor pegada ecológica possível.
Agora é olhar para a NOVA PAPELEIRA INTELIGENTE espalhada por Lisboa e por vários outros municípios (encontram-se num instante no google). A empresa que a vende, um dos principais players ibéricos na prestação de serviços no setor das águas, saneamento e conservação de superfícies (nas suas próprias palavras) chama-lhe papeleira inteligente wastemaster (ah, tão melhor do que caixote do lixo – só que não) e diz que é a mais vendida em Portugal. Pelos vistos foi estrela na Portugal Smart Cities Summit, um evento da ©SMARTCITIES que é uma entidade relacionada com cidades sustentáveis cheia de smart people (não estou a gozar, é o que diz no site). Estou-me a desviar do tema mas fico sempre fascinada (e com vontade de chorar) quando espreito para estes universos. Voltemos à NOVA PAPELEIRA INTELIGENTE:
papeleira
pa.pe.lei.rapɐpəˈlɐjrɐ
nome feminino
- móvel onde se guardam papéis; secretária
- cesto ou recipiente próprio para receber lixo de papel
- recipiente colocado em espaço público, próprio receber papel e lixo pouco volumoso
Fonte: Infopédia
Eu sei que os portugueses em geral continuam a não separar o lixo (não sou eu que digo, são os números), mas que a Câmara de Lisboa chame papeleira a um contentor fechado que aparentemente (não diz lá em lado nenhum) é para lixo indiferenciado é triste, assim a roçar o criminoso. Nem vou explorar a questão de não haver opções para papel e embalagens perto das papeleiras (papel? ao pé do caixote que se chama papeleira? se calhar era confuso?) nem o assunto muito mais complexo de ensinar/convencer/obrigar as pessoas a separar o lixo. Vamos assumir que vai tudo para o mesmo caixote, aliás papeleira, porque é isso que aparentemente a CML nos está a dizer que façamos. Esqueçam a reciclagem, esqueçam as smart people das smart cities do sustentável (afinal o que é que separar o lixo tem a ver com sustentabilidade?) e avancemos:
Estas papeleiras inteligentes são eléctricas! Mas como são smart e sustentáveis claro que funcionam com um painel solar. Que é como quem diz com uma bateria (lamento, sou do clube dos que não acreditam que os carros eléctricos vieram salvar a humanidade). Um painel solar e uma bateria por papeleira, com custos de produção e manutenção (aposto que) astronomicamente superiores (alguém pode fazer as contas?) aos de um caixote do lixo convencional, para não falar na questão do prazo de validade (quanto tempo vai durar cada uma destas baterias? sustentabilidade, hello?). E são eléctricas porquê? Porque têm, segundo o fabricante, localização GPS e software de gestão! Segundo a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, as papeleiras estão conectadas em rede, permitindo que as equipas de Higiene Urbana saibam quando estas estão cheias e optimizar as rotas de recolha, além disso têm também uma função compactadora, permitindo maior capacidade de armazenamento em relação aos caixotes do lixo convencionais. Ou seja, além de tudo o resto trazem custos associados ao software (ah, e as actualizações, e as questões que têm de ser resolvidas pelo técnico da empresa?) e provavelmente de formação dos funcionários camarários que vão estar no backoffice da rede das papeleiras (já disse um palavrão feio entredentes). Há aqui uma (uma única) coisa que me parece interessante: a capacidade de compactar os resíduos para aumentar a capacidade do contentor (mas também não sei se resíduos orgânicos não têm de ser recolhidos frequentemente de qualquer maneira e, se me dessem o valor deste investimento que eu não sei qual é mas gostava mesmo muito de saber, eu usava-o a montante, em – digam que sou ingénua – aprender a não gerar tanto lixo). Também queria acrescentar que nunca, nunca, vi ninguém a usar uma destas papeleiras para lá pôr seja o que for.
Mas nada do que aqui escrevi exprime o que senti ao ver, no site do fabricante, esta imagem que à primeira nem acreditei que fosse real:
O que é então a papeleira inteligente? Um vestido de luxo, de lixo, super smart, de, adivinhem, um caixote do lixo. I rest my case.
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