habemus

Em 2010 andava pela Serra da Estrela na companhia da minha amiga Diane a conversar com pastores e a visitar fábricas de lanifícios. Já não me lembro exactamente como, fomos parar à fábrica de cobertores de José Pires Freire, em Maçaínhas, onde duas operárias e um tecelão reformado asseguravam a produção do ex-libris da região, o Cobertor de Papa. O futuro estava longe de estar garantido mas ainda se conseguia dar resposta às encomendas. Anos depois, o patrão já idoso encerrou o negócio e vendeu o equipamento, aparentemente condenando à extinção o genuíno (porque tecido em tear manual) Cobertor de Papa. Os contornos deste quase fim davam um artigo de fundo com variadíssimas ramificações que pintaria um eloquente retrato do país que temos (fica o convite feito aos jornalistas de investigação que ainda vão existindo). Em 2025, a associação O Genuíno Cobertor de Papa mantém, milagrosamente com as máquinas que vi em 2010 e no mesmo local, uma produção muito residual de cobertores graças à tenacidade da ex-operária Céu Reis (nas fotos) mas que assenta no trabalho esporádico de um tecelão que não o era nem tem saúde para o ser. Não faltam curiosos, não falta visibilidade (só) dada pelo programa oficial do Estado para o Saber Fazer, não faltam operadores de turismo mais ou menos chique a capitalizar visitas, não faltam encomendas. Mas na verdade falta tudo para manter vivo este produto secular, porque não há um tecelão a tempo inteiro nem o mínimo de apoio logístico que dignifique o trabalho de quem não quis desistir.

A produção em Portugal do mais quente dos nossos cobertores de lã remonta aos meados do século XVI, apesar de se saber por referências em documentos medievais que já era usado e estimado muito antes. Em 1572, os estalajadeiros da cidade de Lisboa usavam-nos nos quartos mais confortáveis, sendo que na categoria abaixo os hóspedes tinham apenas direito a uma manta alentejana. O Cobertor de Papa deve as suas qualidades às daquela que é hoje em dia a mais desvalorizada das nossas lãs, a lã de tipo churro (ou seja, mais longa e grosseira que as dos tipos fino e entrefino). Inteiramente tecido em lã churra, o cobertor é depois apisoado e cardado, de forma que muitas das fibras longas e volumosas que o compõem ficam levantadas e criam um manto suave de pêlo que, tal como acontece nos animais, retém o ar quente e portanto aquece rapidamente quem com ele se abriga.

Fotografias de Diane Gazeau (2010) e Paulo Lima (2025).

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